Wednesday, November 25, 2009

Atraso

O jardim estava um pouco diferente da última vez que esteve lá, há alguns meses, mas era a mesma casa. Tocou a campainha. Na mão esquerda trazia um girassol, que escondia nas costas.

Aquele homem visto de trás com a flor daria uma bela foto.

Uma voz metálica de mulher saiu do interfone:

- Pois não?

- Eh... Lúcia?

- A Lúcia não mora mais aqui.- respondeu a mulher com segurança.

- Como não? Ela nem me avisou!

- Sinto muito, mas não tem nenhuma Lúcia...

- Espera um pouco. Não estou acreditando, você pode aparecer aqui fora só um pouco?

- Olha, eu estou ocupada...

- Só um minuto, queria deixar algo caso um dia ela apareça.

- Ok, mas só um minuto.

A mulher foi calmamente até o portão, tinha uma feição blasé.

- Lúcia?! É você! Porque mentiu pra mim?

- Não menti. Não sou Lúcia. Pra você, sou Luzia. Prazer.

Monday, November 16, 2009

40 graus

Nossas barrigas
coladas de suor
respiram juntas.

Wednesday, November 11, 2009

Música boa

Lá pelas tantas na boate, já bêbada de tanta cerveja, andava sorumbática, até que seu amigo gay a alertou:

- Olha o gatinho ali, e é HT, viu menina?

Aproveitou da sua borrachera para dar um oi.

- Oi!

- Oi!

Ela saiu fora, ele a puxou pelo braço:

-Volta aqui.

E muitos blá blá blás depois, ficaram.

Bêbada, ela ficava atirada, e ele encantador, ou talvez fosse só uma ilusão de álccol.

- Vamos lá pra casa?

- Onde você mora?

- Aqui perto, num condomínio em Nova Lima.

- Ah, será? Você tem computador lá? Só vou se você deixar eu te mostrar uma música do meu mp3 player.

- Tenho um som lá. Serve?

- Mas toca mp3?

- É... não sei, a gente pode tentar.

- Ok.

- Vamos no meu carro?

- Não, prefiro ir no meu.

E ela foi seguindo o rapaz.

Chegaram na casa, que mais parecia uma casa de campo com quadras, piscina e nenhum móvel, só uma cama box de casal.

- Você mora aqui?

- Não, na verdade, essa é a casa de campo dos meus pais.

- Hum...

O som era daqueles microsystems velhos, que nunca teria uma entrada USB.

Na falta de música, foram para o único móvel da casa e lá permaneceram a noite toda.

De manhã acordaram e conversavam coisas banais e engraçadas. Até que ouviram barulhos pela casa:

- Parece que não estamos sozinhos.

- Putz, são os meus pais!

- Mas eles são tranquilos?

- Não. Nenhum pouco.

- Ai que vergonha! Vou pular a janela.

- Se quiser eu trago seu carro pra cá, você faria isso por mim?

- Acho que sim, essa situação seria embaraçosa, né?

- Sim, muito.

Beijou-a novamente e perguntou:

- Você tem namorado?

- Não, por quê? Você tem namorada?

- Tenho.

Ela tentou fingir a cara de surpresa, mas não se sabe se conseguiu.

- Ah é? E namoram há muito tempo?

- 3 meses.

- E cadê ela?

- Deixei ela em casa e saí. Muito chata. Muito carente.

- Hum.. Aqui, já tá ficando tarde, melhor eu ir embora.

- Ok. Vou trazer seu carro pra perto da janela, tá?

- Ah não, pode deixar. Vou pela porta da frente mesmo.

- Tem certeza? E os meus pais?

- Tem problema não, querido. Vou adorar conhecê-los.

Ela vestiu a roupa da noite anterior, arrumou a maquiagem e saiu se sentindo poderosa.

Os pais do garotinho estavam cozinhando o almoço.

Ela foi até a mãe, se apresentou, deu um beijo e um abraço.

- Almoça com a gente hoje - convidou a mãe.

- Não mãe, ela tem compromisso.

- É, hoje eu tenho compromisso, mas fica para próxima. A propósito, o seu jardim está muito bem cuidado.

- Obrigada - a mãe sorriu orgulhosa.

O pai do garotinho olhava aquela cena com a cara mais constrangedora do universo, como se já tivesse passado por algo semelhante, e não foi tão receptivo com a garota petulante, mas mesmo assim, ela não se deu por vencida, foi até o velho babão e o cumprimentou com um dos seus sorrisos mais cativantes e irônicos, claro. Ela estava se divertindo.

O menino de 30 anos a levou até o carro.

- Você tem meu telefone. Pode me ligar.

- Ah, mas que bom que eu posso. Obrigada, pode esperar.

E despediu do bebezinho com um beijão que constrangeu aquele almoço de domingo.

Entrou no carro, apagou o telefone do bebezinho, ligou o som no talo e ouviu sozinha a música que tanto queria ouvir na noite passada. Chegou a uma conclusão: música boa não é para qualquer um.

Monday, November 9, 2009

Na praça

Saí mais cedo de casa para evitar o trânsito. Calculei mal, ainda faltava uma hora para a minha homologação. Já que estava longe de casa mesmo, resolvi esperar. Pensei em tomar um café mas estava quente. Fui para a praça da Liberdade, lá tem sempre uns banquinhos livres e sombra.

Ao contrário do resto da cidade, lá ventava e era gostoso sentir o vento retirando os fios de cabelos que caíam sobre meu rosto. Havia muito tempo que eu não sabia o que era estar à toa no meio da tarde sentada em um banco de praça. Esta sensação boa acabou logo que a vergonha e a culpa invadiram a minha mente. Não me permiti desfrutar desse momento mágico às 3 horas da tarde. Tive medo de encontrar conhecidos e ter que me justificar. Que ideia! Que dependência do olhar dos outros.

Na praça havia somente estudantes em seus uniformes, hippies e velhinhos aposentados passeando com seus netinhos. Muitos carrinhos de bebês e crianças aprendendo a andar. Um garotinho que nem 1 ano devia ter veio cambaleante em minha direção, com um olhar sério e fixo. Olhava tão dentro dos meus olhos que era como se eu fosse um fantasma e só ele poderia realmente me enxergar. Mesmo sem dar nenhum sorriso, aquele olhar era puro, não havia julgamentos nem segundas intenções. Aquilo subitamente me encheu de emoção.

Passado o encantamento pela despretensão do menininho, veio um aperto no coração em saber que enquanto ele aprendia a andar, também desaprendia a olhar com os olhos e passava essa função para a cabeça.

Respirei fundo e deixei o mal estar passar. O pior não é ver com a cabeça, é se enxergar no espelho dos olhos dos outros.